4 de novembro de 2009

A carta



Conto:

A carta


Juçara e seu marido Plínio foram para casa, depois de um exaustivo dia de trabalho. Eram proprietários de um comércio de secos e molhados em uma pequena cidade no interior de Minas Gerais. Voltavam para casa a pé como de costume. Ao chegarem às esquinas das Rua Vicente Celestino com a Rua São João, algo chamou atenção deles. Depararam-se com velas vermelhas, presentes, charutos e bebidas acomodados cuidadosamente no chão, sobre uma toalha xadrez.
Deduziram tratar-se de um despacho. Juçara se sentiu atraída pelos pacotes deixados ao lado das oferendas. Chamavam a atenção pelos laços de fita coloridos e de como foram embrulhados com capricho. Plínio, o marido, intrigou-se com o envelope azul. A carta foi estratégicamente colocada ao lado dos objetos.
Supersticioso, Plínio não deixou Juçara tocar nos embrulhos.
- Deixa isso para lá, mulher. Vamos logo embora.
Novamente seguiram o trajeto para casa, os filhos os esperavam para jantar e já era tarde. Estavam atrasados, demoraram um pouco mais neste dia por causa do balancete mensal.
O tempo estava arredio, ameaçava chover e caminhavam rapidamente.
Sem mais nem menos, Juçara sentiu uma estranha sensação de que alguém os seguia. Olhou para trás várias vezes, mas não viu ninguém. A casa deles parecia distante, mesmo estando a apenas alguns minutos dali.
Querendo ou não, teriam que passar pela lateral de um loteamento que diziam ter sido um cemitério indígena. A aparência do local era sempre sinistra em rua de pouco movimento de pessoas e de carros, principalmente à noite.
O cemitério, com o passar dos anos ficou completamente abandonado. Havia somente algumas pedras sobrepostas e árvores com barbas de velho. O local não tinha muros, nem cerca, nem nada. Apenas mato, pedras e mais pedras. As pedras demarcavam onde eram enterrados os mortos.
No silêncio da noite, não tinha como não ouvir o zumbido do vento e os ouvidos ficaram em estado de alerta.
Os moradores mais antigos contavam que antes do mapeamento da região, uma tribo de índios nativos havia sido dizimada. Os que resistiram ao ataque foram empalados por suas cabeças a mando dos coronéis, os desbravadores daquelas terras. Comentava-se ainda que entre os índios assassinados, existiu um curandeiro xamã e que seu espírito vagava pelo cemitério todas as noites pela crueldade de tais atos.
Ao se lembrar desta história, Juçara preocupou-se em passar por ali.
De repente ouviram um som que os assustou. Era o de uma coruja. Sentiram um frio percorrer pela espinha, todos sabiam que o pássaro era sinal de mau agouro.
Juçara continuou com a sensação de estarem sendo seguidos. No escuro, tentava pensar nos filhos. Só queriam chegar logo e rever as crianças, para em seguida liberar a pessoa que cuidava deles durante o dia.
Relâmpagos estremeceram ao passarem por aquele local. Raios estamparam-se pelo céu, como um show macabro de som e luzes. Andaram o mais rápido que puderam para escapar da chuva. Puderam ouvir também o som dos cães latindo furiosamente para o nada.
Juçara disse para o marido que estava com medo e agarrou-se ao braço dele para continuarem o trajeto.
Alguns pingos começaram a cair. Não tardou para a chuva aumentar. Pararam sob a marquise de um imóvel abandonado na próxima rua para se proteger. Faltavam poucas quadras para chegarem em casa.
Parados ali, de repente perceberam sussurros que pareciam entoar um cântico ritualístico. Ouviram gemidos e gritos abafados vindos detrás das paredes do casarão em ruínas. Entreolharam-se como se não acreditassem naqueles sons. Apavorados saíram dalí correndo, mesmo debaixo de chuva, sem ao menos olharem para trás.
Chegaram em casa ofegantes por terem corrido sem parar. Entraram rapidamente e bateram a porta, ainda trêmulos. Benzeram-se com o sinal da cruz. Verificaram que seus filhos estavam bem e agradeceram a Deus por se encontrarem dentro de casa.
Juçara e Plínio mal conseguiram dormir naquela noite, pelo medo que passaram. Ficaram relembrando dos sons que os deixaram apreensivos e assustados.
A noite foi longa para os dois. Assim que amanheceu, Plínio retornou ao trabalho pelo mesmo caminho de sempre. Juçara trabalhava com ele só no período da tarde, de manhã cuidava da casa e dos filhos.
No meio do caminho, Plínio avistou de longe um andarilho alto e pálido, parado em frente ao casarão abandonado, mas algo lhe chamou a atenção. O homem segurava a carta de envelope azul, exatamente igual aquela que vira no despacho na noite anterior naquela esquina.
Intrigado, observou aquele homem que pensava ser um mendigo. Ele levava consigo apenas uma mochila velha e sentou-se abaixo da marquise para ler o conteúdo da carta. Fechou os olhos como se relembrasse de alguém. Guardou carta na mochila e Plínio percebeu que os presentes também estavam com ele.
Plínio para ser discreto na observação, atravessou a rua e atentou-se para a camisa encardida dele. Parecia que estava suja de sangue. Se perguntou quem era, mas não se lembrava de tê-lo visto antes.
Ao chegar ao trabalho, Plínio comentou com um freguês, o primeiro que apareceu naquela manhã, sobre o acontecido da volta para casa na noite anterior.
Incrédulo, Plínio ouviu o homem contar que a casa abandonada pertenceu ao coronel Afrânio Silveira.
O coronel Silveira, era um dos nomes mais respeitados entre as autoridades da cidade. Ouviam dizer que ele contratava matadores e estes faziam justiça com as próprias mãos sempre que algo saía do planejado. Os boatos eram de que o coronel havia se suicidado.
O freguês comentou ainda que no enterro do Dr. Afrânio, durante o sepultamento, ouviram seis badaladas de um sino. O som causou desconforto a todos, pois não existia nenhuma igreja por perto. Depois deste fato, souberam que se tratava da mais temida das superstições. Quando um sino baladasse seis vezes em um velório significava a passagem do morto pelos portões do inferno e este voltaria em forma de uma criatura sedenta de sangue.
As más línguas diziam que Afrânio Silveira teve uma amante e manteve esta paixão secreta por longos anos. Até hoje, ninguém descobriu de quem se tratava. Comentam que quando o casal não podia se encontrar dialogava então por cartas. Foi um romance do tipo impossível de se concretizar, pelo fato de ambos serem casados. Tudo foi interrompido com a tragédia do suicídio do coronel, inconformado com a vida dúbia que levava.
Plínio ficou sabendo também de que todos os anos, presentes eram colocados em uma determinada encruzilhada, na data de aniversário do coronel Afrânio. Mais precisamente em outubro, mês de aniversário dele. Isso já se repetia há duas décadas. Comentava-se na cidade que poderia ser alguém querendo homenageá-lo.
Plínio já ia se esquecendo dessa história, quando três dias depois, comprou o jornal de manhã, como de costume, para ler as novidades do dia. Ao folhear as páginas, parou atônito com a reportagem do casarão abandonado. Havia uma fotografia do imóvel depreciado e outra ao lado, do coronel Silveira estampadas ali. Na página seguinte, o texto apontava para um crime que ocorrera na noite anterior nas dependências do que restava da velha casa. Um homem apareceu morto, possivelmente um morador e rua e não haviam evidências de como acontecera o crime.
Perplexo, com a coincidência da matéria, sobre a arquitetura clássica do imóvel abandonado. Era parte do patrimônio do que pertencera ao coronel Afrânio Silveira.
Dr. Afrânio tinha sido um homem que fez parte da política local, assim como outros pioneiros e fundadores da cidade.
Plínio estava pasmo com a semelhança do coronel, com o andarilho que tinha visto em frente ao casarão dias atrás. Pensou consigo - Não pode ser... Aquele homem é muito parecido com o coronel. Sem acreditar, pensou que poderia ser fantasma do coronel morto há anos. Não! Não... Isto não existe, mas continuava a se perguntar - Será que ele vinha buscar as cartas da amada? Ele morreu, ou não morreu? Quem era aquele homem então?
A polícia não encontrou no local, nenhum vestígio do criminoso. O morto provavelmente debateu-se antes de ser ferido, estava com as roupas rasgadas. Para aumentar o mistério, havia marca de uma mordida em seu pescoço.
Diante de tantos questionamentos, Plínio contou para Jussara assim que a viu na loja à tarde. Depois disso, a população evitava sair à noite. Tinham medo do que poderia ser um vampiro. Não queriam ser a próxima vítima.
Sensibilizados e preocupados com o drama, Plínio e Juçara, mandaram rezar uma missa por mês, por sete meses, para as almas, para que o coronel descansasse em paz. E principalmente para que também pudessem ter mais tranquilidade para retornarem para casa à noite, depois do trabalho e não mais encontrar com almas penadas pelo caminho.
A verdade? Nunca souberam... Tampouco encontraram novamente com o fantasma ou quem sabe, o vampiro.

Rosi Caobianco
Novembro/2009

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